CAPÍTULO V: O DISCURSO POLÍTICO

CAPÍTULO V: [1]O DISCURSO POLÍTICO

 

O discurso político tem como atrativo seu caráter persuasivo e argumentativo.

 

Funções da linguagem

Todo ato de comunicação verbal depende de um conjunto de fatores para ter êxito. Um ato de comunicação bem-sucedido apresenta um emissor e um receptor compartilhando um mesmo código e, através de um canal físico, o primeiro deve ser capaz de enviar uma mensagem ao segundo, sendo que esta mensagem deve estar inserida em um contexto comum a ambos.

 

A proposta de Tavares é analisar estas funções da linguagem segundo a teoria desenvolvida por Jakobson (1973, apud TAVARES; BRANDÃO, 2011, p. 189), ressaltando que elas funcionam como ferramentas teórico-práticas até os dias atuais, como poderemos observar através dos exemplos.

 

Função referencial

A mensagem volta-se para o referente, o contexto. Através desta função pretende-se transmitir informação; testar a veracidade ou a falsidade das informações. Neste caso, podemos pensar nas campanhas de utilidade pública que visam informar e advertir a população para algum fato.

 

Função metalinguística

A mensagem pende para o código e este é utilizado para explicar a si mesmo. Esta função faz parte constante do nosso cotidiano, pois toda vez que procuramos uma definição no dicionário ou questionamos o significado de uma determinada palavra utilizamos os recursos da linguagem e do próprio código para entendê-la.

 

Função poética

A mensagem volta-se para ela mesma, ou seja, a disposição e a combinação das palavras é o que mais importa, pois o modo como elas se mostram já cria um determinado significado. Assim é comum encontrarmos recursos como rimas, ritmo, figuras sonoras (aliteração) e figuras de linguagem como metáforas e metonímias. O uso desta função é constante nas campanhas publicitárias e políticas.

 

Função emotiva

A mensagem converge para o emissor que, através de interjeições, adjetivos, advérbios, entonações etc., expressa suas emoções através de ideias (verdadeiras ou simuladas) e estas, por sua vez, informam ao receptor a opinião do emissor sobre o referente.

 

Função fática

A mensagem testa o canal, quebra o silêncio que isola e impõe a participação do interlocutor. Um exemplo típico desta função é o “diálogo meteorológico” estabelecido por dois indivíduos na sala de espera de um consultório.

 

Função conativa

A mensagem volta-se para o receptor, tentando despertar-lhe a atenção. Geralmente, são utilizadas frases imperativas porque, ao contrario das declarativas, a verdade nelas contida não pode ser contestada. Ao nos depararmos com o enunciado Leia o Estadão, não nos é facultado questionar se este é verdadeiro ou falso.

 

No caso das mensagens publicitárias e políticas, a função conativa está sempre presente, pois o objetivo é envolver, seduzir e persuadir, conquistando, assim, novos adeptos.  Dessa maneira, o locutor trabalha constantemente com a questão da ideologia, a fim de marcar a sua posição social e histórica e construir uma imagem compatível com o auditório que pretende envolver.

 

A imagem do enunciador

Para induzir o destinatário a aceitar uma mensagem, o locutor precisa preocupar-se não apenas com o que vai falar, mas também em como falar, pois, dependendo do “tom” assumindo pelo seu texto, é uma determinada imagem que o interlocutor constrói sobre o locutor, isto é, a partir de sua leitura o interlocutor cria uma imagem correspondente para o enunciador.

 

O conceito que trata da construção da imagem de si mesmo pelo modo de dizer foi denominado de ethos e desenvolvido por Maingueneau (1997, apud TAVARES; BRANDÃO, 2011) a partir de uma figura de retórica antiga, ethé, utilidades a si mesmos. No caso de discursos polêmicos, com, por exemplo, o político, é vinculada, em oposição à ethos, a imagem de uma antagonista, denominada antiethos.

 

A relação da linguagem com a ideologia

Os fragmentos transcritos a seguir foram extraídos, respectivamente, dos textos “Vamos atender o apelo do papa” de Raul Jungmann (ministro extraordinário de política fundiária) e “FHC e a reforma agrária” de José Rainha Jr. (membro da direção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST) [1].

 

                                                                                      Fragmento 1

O presidente elegeu a reforma agrária como uma das suas prioridades, e todo o governo está empenhando em realizá-lo dentro do que preceitua a lei: sem invasões de terra e de prédios públicos, sem sequestros de funcionários, sem milícias particulares armadas, sem execuções — enfim, sem nada que seja ou venha a gerar violência. (...) Ora, todos sabemos que a terra improdutiva desfigura por inteiro o preceito de sua função social. Sabemos, ainda, que a pobreza dos sem-terra não deve nem pode ser tolerada. Concordamos em que, se o homem é o centro, e uma existência digna, a “conditio sine qua” de sua integridade e desenvolvimento, tudo o mais deve submeter-se a esse desígnio.

Muitos, no entanto, acreditam que a pobreza deve ser combatida a qualquer preço, até mesmo o da democracia... (sic). É dessa crença que emerge a “a legitimação profunda” das invasões.

                                    

Fragmento 2

 

Não é possível que o sr. não compreenda que a reforma agrária pela qual nós, do MST, lutamos está dentro da lei. Queremos o cumprimento da lei, e quando ela só serve para favorecer os ricos e castigar os pobres, é de direito que os pequenos se rebelem. (...) Olha, presidente, o MST nunca teve o objetivo de perturbar a ordem e muito menos quer desestabilizar o governo. Disso o sr. tenha certeza. Nós somos um movimento que luta por terra e quer a reforma agrária como forma de consolidar a democracia. Não é possível dizer que existe democracia num país que tem uma estrutura fundiária concentradora como a nossa. Isso sem falar do trabalho escravo nas grandes fazendas do Pará, de Goiás etc.

 

 

Analisando brevemente os dois fragmentos:

 

·         O sentido deles se constrói em direções opostas. A palavra democracia no fragmento 1 dentro de um processo no qual o uso da violência ou de qualquer outra forma de atitude, que não a legal, seja completamente descartado. Democracia = utilização das leis como forma de atingir um determinado objetivo; a reforma agrária deve ficar a cargo do poder público já que este detém os mecanismos legais.

 

·         Já no fragmento 2, temos que a luta e o emprego de métodos alternativos para se chegar a um objetivo legal e justo traduzem-se na luta pela própria democracia. Democracia = utilização de recursos alternativos para atingir um determinado objetivo; a reforma agrária deve ser realizada numa ação conjunta entre o governo e a sociedade, cabendo a esta última pressionar o governo para que o processo ocorra de forma rápida e eficaz.

 

Como vimos, uma palavra pode assumir sentidos diferentes quando inserida em um texto, ou seja, não é possível limitar o sentido de uma palavra (expressão ou proposição) enquanto signo isolado. O que ocorre é que o sujeito, ao produzir um discurso, se posiciona social e historicamente e, dessa forma, ele assume uma formação ideológica e fala de dentro desta. O que possam trazer à tona outras formações ideológicas, estabelecendo-se, assim, uma seleção de crenças, valores e formas linguísticas, que chamaremos de formação discursiva e que pode ser definida como “o que pode e deve ser dito”.

 

Mecanismos utilizados pelo locutor para produzir seu discurso

 

Articulações de argumentos

A necessidade de convencer a plateia leva o locutor a escolher argumentos que corroborem a sua tese ou que invalidem outras posições, contrárias à sua e que possam emergir em seu texto. Por isso, a seleção de dados é de extrema importância no processo de construção do discurso argumentativo. Exemplificam esses dados: as compilações estatísticas, citações de autoridades, entre outras.

Como exemplo, retomemos o fragmento de Raul Jungmann utilizado anteriormente:

O apelo do papa João 2º no sentindo de que façamos uma reforma agrária com respeito à lei traduz o exato pensamento do governo Fernando Henrique Cardoso.

O presidente elegeu a reforma agrária como uma das sua prioridade, e todo o governo está empenhado em realiza-la dentro do que preceitua a lei: sem invasões de terra e de prédios públicos, sem sequestros de funcionários, sem milícias particulares armadas, sem execuções — enfim, sem nada que seja ou venha gerar violência.

 

Observando os dois parágrafos do texto é possível depreendermos os seguintes dados selecionados pelo autor:

a.       O papa João Paulo 2º manifestou-se quanto à questão da reforma agrária no Brasil, dizendo-se favorável a um processo com bases legais e sem violência.

b.      As pessoas que geram violência são aquelas que invadem terras e prédios públicos, sequestram funcionários e formam milícias particulares.

 

Estes dados selecionados pelo autor apresentam-se como incontestáveis, uma vez que são fatos que realmente ocorreram, ou seja, o para João Paulo 2º esteve no Brasil entre os dias 09 e 13 de outubro de 1997 e questionou sobre a reforma agrária e em 30 de maio de 1996, 400 agricultores tomaram o prédio do Ministério da Agricultura a fim de exigir a liberação de 2 bilhões de reais do Tesouro.

 

No entanto, não são considerados os contextos em que tais ações ou declarações ocorreram, afinal para o locutor interessa que seu interlocutor se lembre apenas dos fatos isolados, o que confirmaria a “veracidade” dos dados apresentados pelo locutor e, consequentemente, criaria uma maior credibilidade ao texto.

 

Metáfora

A metáfora aparece como outro mecanismo utilizado pelo locutor, sendo que ela não será entendida como uma figura de linguagem utilizada para embelezar o texto ou uma comparação abreviada que introduz uma nova significação a uma determinada palavra. Como processo argumentativo, devemos vincular o conceito de metáfora à questão da analogia.

 

A força da metáfora como argumentação está no fato de que, ao diluir os limites entre dois elementos, ela diminuiu o caráter opinativo da analogia, isto é, a metáfora apresenta as semelhanças como um dado e não como uma sugestão conforme ocorre na analogia.

 

Exemplificando a metáfora no discurso político no trecho do texto [2]“Os inimigos do real”, de Carlos Heitor Cony:

 

(...) o presidente da República, que também pode usar a mão para assinar as demissões e melar todo o ataque da equipe da inflação.

 

Podemos perceber a utilização de um sistema metafórico — a inflação é uma identidade —, através do qual um conceito abstrato é personificado. É um recurso eficiente de polidez, pois permite ao sujeito falante não atacar diretamente os responsáveis por determinada situação.

 

Operadores argumentativos

Antes de qualquer coisa, há que se perceber as vozes que permeiam o discurso. A presença do outro é fácil de ser constada dentro de um discurso quando o locutor se utiliza de alguns recursos como por exemplo: aspas, discurso direto ou indireto. No entanto, há maneiras de introduzir um ou mais pontos de vista sem identificar seus enunciadores, o que possibilita ao locutor refutar uma determinada colocação sem atacar diretamente o outro ou mesmo comprometer-se com algumas colocações.

 

O locutor, por estabelecer esse limite, vai utilizar-se, entre outros mecanismos, dos operadores argumentativos, que podem ser entendidos como os condutores de força argumentativa dos enunciados.

 

Vejamos o operador argumentativo mas, observamos que ele estabelece uma ligação e um movimento de oposição entre dois atos distintos. O mas não vai apenas contrapor dois enunciados, mas sim, analisar a oposição entre dois pontos de vistas, duas vozes.

 

Vejamos este exemplo — a frase de [3]Miguel Arraes:

Presidente, sou contra a reeleição. Mas o país não pode prescindir da continuidade de sua permanência no governo.

 

A primeira parte do enunciado nos leva à conclusão de que o locutor seria contra a continuidade do então presidente no poder. No entanto, ao continuarmos a leitura percebemos que o argumento apresentado na segunda parte nos direciona a uma conclusão oposta, o locutor é a favor e apoia a continuidade do presidente no poder.

            Outro elemento constitutivo da argumentatividade neste exemplo e a negação, que segundo Brandão (1998 apud TAVARES; BRANDÃO 2011), ocupa lugar privilegiado entre os marcadores de refutação porque (...) manifesta explicitamente a existência de uma contradição com o que foi previamente asserido.

            No exemplo da frase de Miguel Arraes, assim como o mas nos direciona a uma conclusão oposta à primeira frase, temos também a negação reafirmando a conclusão do que o presidente deve continuar no poder, pois ela refuta o pressuposto do enunciado positivo, ou seja, se pensarmos no enunciado “o país pode prescindir da continuidade de sua permanência no governo”, então recai sobre o pressuposto de que a eleição não é necessária.

 

RESUMINDO:

  • O discurso polÍtico é de caráter persuasivo e argumentativo, logo todo discurso levará em conta seus interlocutores, bem como os argumentos para convencê-los da “veracidade” do enunciado em questão (função referencial).
  • No discurso político há uma preocupação com a imagem que tem esse enunciador, o político está interessado em seduzir seus interlocutores, principalmente se esse enunciado está dentro do contexto de campanhas eleitorais.
  • Todo discurso político está carregado de  uma linguagem ideológica, o enunciador manifesta implícita ou explicitamente seus sistemas de valores e crenças (o que pode ou não ser dito). Para tanto, lançará mão de argumentos, metáforas, recursos do discurso alheio demarcado e não demarcado, visando ganhar o auditório para si.


Reflexões para a prática docente

Indubitavelmente trabalhar esse tipo de discurso em sala de aula tem grande relevância, visto é que uma oportunidade de construir a consciência política dos alunos, formando-os cidadãos.

 

Há alguns desafios que envolvem essa prática:

a.       Lidar com a ideia preconcebida do que é política, uma vez que culturalmente ela está atrelada à corrupção/malandragem.

b.      A população de modo geral, inclua-se os alunos, é pouco preparada para pensar de maneira crítica e para desempenhar plenamente seu papel de cidadão. O que requer investimento de tempo para colocá-los em contato com essa realidade para que então possam apreender a necessidade de sua partição política desde o contexto escolar, seu bairro etc.

c.       Mostrar aos alunos que de alguma maneira, todos nós, estamos engajados politicamente em alguma causa.  Todo discurso pode receber um significado político dependendo de nossa leitura, até mesmo nossas conversações diárias podem ser chamados políticos posto que veiculam, conscientemente ou não,  sistemas de valores e crenças.

Ex. O sujeito que defende a ideia de que não adianta estudar, porque pensa que estudando ou não estudando,  não há alteração alguma em sua condição de vida.  Há uma manifestação de cunho politico: o determinismo. É uma crença, um valor constituído nesse sujeito.

d.      Assegurar-se de que o alunado conhece as figuras de linguagem, de maneira a identifica-las no discurso político.

 

Uma ideia seria trabalhar, inicialmente, com a imagem: a charge, posto que o discurso se expressa via linguagem verbal e não verbal. A partir deste ponto, apresentar  os discursos políticos eleitorais, de opinião pública etc.

 

[...] A consciência tem o poder de abordá-lo (signo cultural) verbalmente. Toda refração ideológica do ser em processo de formação, seja qual for a natureza de seu material significante,  é acompanhada de uma refração ideológica verbal, como fenômeno obrigatoriamente concomitante.  A palavra está presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação.  (BAKHTIN, 2002, p. 38 apud SILVA, 2008 ).

 

 Vale ressaltar a importância deste tipo de discurso para o alunato que compõe o ensino médio, visto que muitos deles já estão habilitados para votar.

 

Com alunos dos primeiros anos do ensino fundamental pode-se lançar uma semente, que seja a gênese de uma consciência política. Nesse caso, a ferramenta seria o site: https://www.plenarinho.gov.br/, que deve ser trabalhado no laboratório de informática. O site é didático, de fácil navegação  e conta com uma seção destinada aos professores, visando orientá-los para melhor aproveitamento dos recursos do site.

Um sugestão para sala de aula:

Análise do discurso político

 

O nosso partido cumpre o que promete.

Só os néscios podem crer que

Não lutaremos contra a corrupção.

Porque, se há algo certo para nós, é que

A honestidade e a transparência são fundamentais

Para alcançar os nossos ideais

Mostraremos que é grande estupidez crer que

As máfias continuarão no governo , como sempre.

Asseguramos sem dúvida que

A justiça social será o alvo de nossa ação.

Apesar disso, há idiotas que imaginam que

Se possa governar com as manchas da velha política.

Quando assumirmos o poder, faremos tudo para que

se termine com  os marajás e as negociatas.

Não permitiremos de nenhum modo que

As nossas crianças morram de fome.

Cumpriremos os nossos propósitos mesmo que

Os recursos económicos do país se esgotem.

Exerceremos o poder até que

Compreendam que

Somos a nova política.

(Fonte: https://portuguesonline2.no.sapo.pt/dispolit.htm)

 

·         Percebe-se as marcas textuais do discurso político a persuasão e os elementos argumentativos que visam convencer seu eleitorado da veracidade de suas intenções políticas:

“o nosso partido cumpre o que promete”.

·         A preocupação com a imagem do enunciador: honestidade, transparência

·         A negação implícita ao se comparar com a concorrência: as máfias... no governo, quer dizer, se não estamos no governo, não somos máfia.

·         A linguagem ideológica que permeia o discurso: velha política, faremos tudo para que se termine com os marajás e as negociatas, não permitiremos que as crianças morram de fome, somos nova política.

·         Tudo isso visa ganhar o auditório para si.

·         Agora, leiamos o mesmo discurso linha por linha, de baixo para cima. 

Em discurso político é assim: nem tudo o que reluz é ouro !!!



[1] Estes textos foram publicados na edição de 23/07/1997 do jornal Folha de S. Paulo, p. 3, seção “Tendências/Debates”, Caderno 1.

[2]Publicado na Folha de S. Paulo, 11/07/1994

[3] Publicada na revista Veja, 30/10/1996, p. 14

 



[1] Artigo de autoria Marcela Cristina Evaristo, mestranda de Filologia e Língua Portuguesa — FFLCH-USP