CAPÍTULO III: O CONTO POPULAR

 

CAPÍTULO III: [1]O conto popular

 

A marca da oralidade

Fazem parte de um gênero originalmente oral, vivo e sonoro, destinado a um auditório que não sabe ler. A exposição deste tipo de narrativa é simples, segue uma sequencia lógica. O que conta é a ação dramática. Prende-se ao imaginário ou a memória coletiva, repertório comum ao maior número de ouvintes.

 

Bakhtin (1992, apud GUIMARÃES; BRANDÃO 2011, p. 85), esclarece que a enunciação humana mais primitiva, ainda que realizada por um organismo individual, é do, ponto de vista de seu conteúdo, de sua classificação, organizada fora do individuo pelas condições extra orgânica do meio social.  Logo, o conto deve ser visto não apenas como um fato individual, fruto de um narrador/enunciador que decide, por si, as variações que instaura em sua narrativa, mas como uma enunciação que tenta se adequar a um interlocutor real, que varia conforme o grupo, a hierarquia, os laços sociais/familiares.

 

Uma das marcas do conto popular é sua intenção de prender a atenção dos ouvintes, a ponto de contagiá-los a uma participação apreciativa, durante a própria enunciação. O narrador usa inflexões de voz, modulações melódicas, expressões fisionômicas e gestuais, buscando manter desperto o interesse dos ouvintes, realçando os pontos altos das narrativas, sempre num diálogo sintonizado com o auditório.

 

No Brasil, temos um conhecido personagem contador de contos: a Tia Nastácia de Monteiro Lobato, que, que mesmo sem se descolar do Sítio do Pica-Pau-Amarelo, com linguagem simples, contava às crianças suas histórias.

 

Camara Cascudo (1984, apud GUIMARÃES; BRANDÃO, 2011, p. 87), cita três elementos necessário para caracterizar um conto popular:

a.       Ambiente propício, que ofereça atmosfera tranquila para a evocação do ouvinte.

b.      Uso de expressões iniciais: Era uma vez... Aconteceu um dia...

c.       A narrativa deve ser viva e apaixonada, com a voz materializando as sucessivas fases da história, contada na ordem linear psicológica.

 

Partes constitutivas do conto

Segundo  Propp (1965-1970, apud GUIMARÃES; BRANDÃO, 2011, p. 92), os contos maravilhosos sempre atribuem as mesmas ações a personagens diferentes. E isto nos permite estudar os contos a partir das funções das personagens. As mesmas ações aparecem em num enredo, mudando, apenas os nomes e atributos dos que executam funções. As funções representam as partes constitutivas ou fundamentais do conto,  não levando em consideração aqueles que as executam, mas se agregando logicamente, por esferas, de acordo com que realizam as personagens.

 

Todo conto começa pela exposição de uma situação inicial, onde se enumeram os membros da família ou futuro herói, que apresentado pelo nome e descrição do seu estado. A abertura é seguida de cerca de 30 funções, que se sucedem segundo leis particulares e especificas, de acordo com a narrativa: conto maravilhoso, fábula, anedota.

Conto maravilhoso

Mais examinado por Propp, se desenvolvem a partir de uma falta ou injustiça. Passa-se por intervenções intermediárias marcadas por interdições, transgressões, interrogatórios, combates, provas, perseguições, ajudas, até se chegar ao desfecho, sinalizado por uma punição, vitória ou recompensa.

 

As funções se desenrolam segundo as que as precederam, uma afetando outra. Pertencem ao mesmo eixo e uma influi na outra.

As personagens se agrupam em sete esferas de ação: a esfera do agressor, que comete a falta; do doador, que auxilia o herói; do auxiliar, que repara  a falta; da princesa e seu pai; do mandante; do falso-herói e do herói.

Conto popular como visão de mundo

Darnton (1986, apud GUIMARÃES; BRANDÃO, 2011, p. 94), nos mostra que por trás dos contos veiculados entre os camponeses franceses no século XVIII, havia certo realismo que expressava o modo como esses camponeses viviam nas aldeias, nas estradas.

 

Os contos sempre aconteciam em contextos básicos: casa, aldeia e estradas. Inclusive, a característica de se ouvir histórias ao final da lida diária, num momento de mais tranquilidade, data dessa época. Os contos traduzem fielmente as verdadeiras condições de vida desses camponeses não enquanto narrativas fotográficas, mas permitindo que se localize um substrato de realismo social. A narrativa popular está ligada profundamente às origens históricas-culturais e circunstâncias sociais imediatas que envolvem as comunidades por onde circulam.

 

O conto popular busca sua fonte no imaginário e na memória coletiva, de forma que todo ouvinte ou leitor possa se reconhecer, se identificar, dando sentido ao que ouve ou lê.

 

RESUMINDO:

  • O conto popular. Tem como principal marca a oralidade, lembrando que, o contador do conto deve se empenhar fazer uso da expressão corporal como ferramenta na narração do conto. É uma narrativa simples.
  • A autoria  é anônima, não se sabe quem é o criador da história.
  • Marca textual logo de inicio: Era uma vez... Conta-se... Era um homem...
  • A narrativa popular está ligada às origens históricas-culturais e circunstâncias sociais.
  • O conto desenvolve-se a partir de uma injustiça, tendo no decorrer da história diversas intervenções até chegar-se ao desfecho (de vitória ou recompensa).
  • Poderíamos sintetizar a estrutura do conto da seguinte maneira: Ordem existente - situação inicial; ordem perturbada - a situação de equilíbrio inicial é destruída, o que dá origem a uma série de peripécias que só se interrompem com o aparecimento de uma força corretora; ordem restabelecida.

 

Reflexões para a prática docente

  • O conto pode ser uma excelente oportunidade de trabalhar a criatividade dos alunos, bem como mostrar-lhes as diversas possibilidades que há para finalizarmos uma mesma história, inclusive as suas próprias histórias de vida.
  • Embora seja impossível classificar os contos populares, devido à diversidade. Acredito que vale a pena citar para os alunos do ensino básico os principais ou os mais comumente contados (eles próprios podem ajudar a elencar os contos).
  • Uma ideia é trabalhar as diversas versões da “Cigarra e a Formiga”. Pode-se partir do pressuposto do provérbio popular “Quem conta um conto, aumenta um ponto” – estimular a criação de seu próprio conto.

 

Sugestão para sala de aula:

Análise do conto: O JABUTI E A RAPOSA

 

O jabuti e a raposa

(Versão colhida entre os índios por Couto de Magalhães e depois reproduzida por Silvio Romero)

 

Conta-se que o jabuti tinha uma flauta. Um dia quando ele estava tocando sua flauta, a raposa foi escutar e lhe disse: “Empresta-me esta flauta.”

“Eu não! respondeu o jabuti: para  tu fugires com minha flauta...”

A raposa disse: “Então toca para eu ouvir a tua flauta.”

O jabuti tocou assim:

Fin, fin, fin!

Culo fon, fin!

A raposa disse: “Como és tão formoso com a tua flauta, jabuti.  Empresta-me um bocadinho.”

O jabuti respondeu: “Pega lá! Agora não  me vá fugir com a minha flauta: se fugires, atiro-te com esta cera em  cima.”

A raposa tomou a flauta do jabuti, tocou e se pôs a dançar e achou muito bonito: depois largou-se na carreira com a flauta.

O jabuti  quis correr atrás; mas não pôde e voltou para o mesmo lugar onde  estava, e disse: “Deixa-te estar, raposa! Não te dou muito tempo que eu não te apanhe.”

O jabuti foi pelo mato afora, chegou perto do rio,  cortou madeira para fazer uma ponte para passar; chegou à outra banda, trepou, cortou da árvore o mel, tirou mel do pau, voltou para trás, chegou ao caminho da raposa, encostou a cabeça no chão,  pegou no pau de mel e untou com ele o traseiro.

Dali a pouco a raposa chegou ali e olhou para aquela água, que parecia tão lustrosa e tão bonita.

A raposa disse: “Ih!... que será isso?”

Meteu o dedo,  lambeu, e disse: “Ih!... i... i...! isto é mel.”

Outra raposa observou:  “Qual mel, nada, aquilo é o traseiro do jabuti!”

A outra respondeu: “Que! o traseiro do jabuti! Como é que isso  é mel...”

Com muita sede que estava meteu a língua nele. O jabuti  apertou o traseiro, a raposa ritou:  “Deixa a minha língua, jabuti!”

A outra disse: ─ “É o que eu te disse. É o traseiro do jabuti; tu  disseste: Como é que isto é  mel, então?”

O jabuti disse então: “Han! han! foi o que eu disse a você, ou  não? Cedo te apanhei. Dizem que tu, raposa, és muito esperta! Que é  da minha flauta?”

A raposa respondeu: “Não está aqui, não, jabuti!”

O jabuti  disse: “Tu bem que a tens aí, dá-me já, senão te aperto mais.”

A  raposa não teve remédio senão restituir a flauta (ROMERO, 2000, p.  271-272 apud GUESSE,  2009)

 

·         Segundo o vimos em Propp, esse é um conto maravilhoso, tendo como elemento inicial a violação de uma interdição, que está subentendida: é proibido roubar. Observa-se também a marca textual: “Conta-se...”.

·         Quando a raposa rouba a flauta do  jabuti está, portanto, transgredindo uma interdição. O roubo expressa a astúcia, da raposa que pede a flauta do jabuti emprestada, e a injustiça sofrida pelo jabuti  ao confiar na raposa, que foge com a flauta.

·         Essa violação gera  uma perseguição pela  parte roubada, ou seja, o jabuti passa a perseguir a raposa para recuperar sua flauta.

·         Quando  o jabuti disfarça seu traseiro com mel  a raposa acredita. Enfia a língua no  traseiro do jabuti e fica presa (punição).  O jabuti consegue sua flauta de volta (recompensa).



[1] Artigo de autoria de Maria Flora Guimarães, mestranda de Filologia e Língua Portuguesa — FFLCH-USP