CAPÍTULO II: O MITO E TRADIÇÃO INDÍGENA

CAPÍTULO II: [1]O mito e tradição indígena

 
 

O mito é um gênero do discurso pertencente à classe dos discursos primários (Bakhtin, 1992 apud JESUS e BRANDÃO, 2011, p.47), é uma narrativa de composição simples que tem uma preocupação explicativa, atendendo a necessidade dos seres humanos de dar um sentido para as coisas e para os fenômenos que os cercam.

 

O foco do mito está nos temas que abordam as raízes culturais de um povo, revelando-nos o seu conhecimento de mundo e seu modo de ver a realidade. Logo, o mito é um gênero narrativo que faz parte da constituição da identidade de um povo.

 

As culturas indígenas brasileiras estão cheias de mitos, que não são do conhecimento da maioria de nós. Uma das razões para esse desconhecimento é o distanciamento ou a negligência com que a cultura e o mito indígenas são tratados nos currículos de Língua Portuguesa e de Literatura Brasileira.

Resgatar e utilizar os vários mitos indígenas no contexto escolar é contribuir para um entendimento da formação da identidade brasileira.

 

O mito conserva situações que, sem ele estariam esquecidas. Ele consagrou-se como um meio de buscar a verdade, o sentido e o significado das coisas, contando histórias sobre a sabedoria da vida.

 

Alguns mitos são encontrados em todas as sociedades, embora funcionem de diferentes maneiras em cada uma delas.

É impossível tratarmos de mito sem trazer à memória as lendas e as superstições. São eles iguais? Em que se assemelham ou em que se diferenciam?

 

Mitos, lendas e superstições

Seríamos simplistas se déssemos uma definição pronta e acabada para um assunto tão complexo. Vejamos como cada um deles se caracteriza:

 

Características do Mito

a.       É transmitido de forma oral.

b.      É uma narrativa que revela, num determinado momento histórico, a necessidade que os seres humanos têm de compreender o universo e de entendê-lo como um todo.

c.       Ao ser registrado pela escrita, conserva aspectos do enredo.

d.      Não visa apenas o entretenimento das pessoas, mas sobretudo mostrar a cultura e o pensamento do homem antigo.

e.       Indica a relação do homem com o mundo.

f.        Uma das principais características do mito é a presença de seres sobrenaturais, como por exemplo, os deuses e a explicação mágica dos fenômenos da natureza ou do surgimento do mundo (isso é percebido claramente na mitologia grega, que ensina que os deuses foram criados pelo Céu e pela Terra para comandar o Universo).

g.       Os personagens podem fazer o que querem, isto é, o que o narrador quer.

h.      O que acontece no mito são coisas que acontecem somente em histórias; elas estão em um mundo literário autossuficiente.

 

Características da Lenda

a.       Termo advindo do latim legenda (coisas que devem ser lidas).

b.      Advém dos primeiros séculos do Cristianismo, sendo um gênero narrativo que reunia histórias e depoimentos sobre a vida de um santo em cujas festas solenes eram lidos.

c.       Trata-se de uma literatura de edificação pessoal, a linguagem que constrói a imagem de santidade do indivíduo é coletiva, não sendo atestada pela história.

d.      Relato referente ao passado remoto, transmitida de geração em geração.

e.       Busca quase sempre transmitir uma ideia precisa de valores morais bastante educativos para a comunidade.

 

Características da Superstição

a.       Palavra originada do latim superstitio-onis (crendice, crença em presságios).

b.      Um espécie de desvio do sentimento de religiosidade, com base no temor e ignorância, induz à aceitação de falsos deveres, ao receio de coisas fantásticas e à confiança em coisas ineficazes.

c.      Crendice: um apego exagerado a qualquer coisa, geralmente sem fundamentação, crença em presságios.

 

RESUMINDO

  • Mito. É  uma narrativa dos tempos fabulosos ou heroicos, cheia de simbologias, geralmente ligada a gênesis do universo e referente a deuses que encarnam as forças da  natureza e os aspectos da condição humana; é a representação de fatos ou personagens reais, modificada pela imaginação popular e pela tradição.
  • É uma explicação imediata, uma constante em movimento.
  • Lenda. É uma narrativa que tem o elemento coletivo. Através de uma determinada história, a lenda tenta dar conta da explicação de alguns elementos da natureza, ao mesmo tempo em que apresenta uma experiência de vida, indutora de maiores reflexões, prevalecendo um moral, um ensinamento.
  • Superstição. É uma crendice, sem fundamentação.

 

Reflexões para a prática docente

  • Acredito que a dificuldade em compreender as diferenças entre mito e lenda seja também compartilhada pelos alunos. Para que haja uma plena compreensão, é necessário investir tempo em explicar as diferenças e até mesmo as semelhanças entre eles.
  • Um bom começo para análise desse gênero:  motivar os alunos a compartilharem quais mitos e lendas conhecem. 
  • Uma vez elucidadas as dúvidas, ao invés de trabalhar os mitos gregos apenas ou preferencialmente, deveríamos trabalhar também os mitos indígenas brasileiros.
  • Este é um excelente momento para despertar a curiosidade dos alunos e aproveitá-la para motivá-los a ampliar o hábito da leitura.

 

Uma sugetão para sala de aula:

Análise de um mito brasileiro: LUA, O GENRO CANIBAL

Lua, o genro Canibal -  (Assurini do rio Tocantins/Tupi)

Lua transformava-se em homem e descia à terra para comer peixe. Em uma dessas vindas à terra, ele encontra um homem que pescava com timbó. Este homem oferece peixes à Lua e convida-o para ir até a aldeia. Lá, oferece sua filha em casamento.

Lua casa-se com a maca. Na hora de dormir, Lua pede à esposa para que durmam separados pois, como esclarece uma das versões, ele está com dor de cabeça causada pelo IPITIU [cheiro forte e desagradável] do peixe que ele havia comido cru. A moça, no entanto, recusa-se a dormir longe do marido e eles acabam deitando-se juntos (...) Durante a noite, Lua come o coração de sua esposa, matando-a. O pai da moça vê muito sangue embaixo da rede de sua filha e se dá conta do acontecido. Lua então é punido. (...) Em algumas versões, o agente da vingança é o tatu (TATURARIA, (ser sobrenatural). Ele flecha Lua, que sangra. As mulheres e crianças são prevenidas no sentido de não saírem de dentro das casas. Elas desobedecem e, ao desobedecer sofrem, o sangue de Lua cai do céu e penetra nelas. As pessoas ficam muito bravas com o tatu por causa de sua atitude e tentam matá-lo, mas ele cava um buraco e consegue fugir. A partir daí, TATURARUA passa a morar dentro da terra.

 

·         Percebemos a presença do sobrenatural “Lua” (alguém que vem do céu) que transforma-se em homem e desce terra para comer peixe e que depois transforma-se em tatu.

·         O mito tenta explicar como deu-se origem da menstruação e como os indígenas  e alguns povos lidam esse período: as mulheres devem ficar reclusas em casa. E traz também a  explicação de um fato: o porquê da casa do tatu ser embaixo da terra, ou seja, são justificativas humanas para questões que o homem não consegue explicar.

·         A estrutura da narrativa é linear, não há divagação.

·          Personagens apresentados de forma anônima: um homem, a moça.

·         Não há indicação de tempo. Quando aconteceu?

·         Não há moral ou avaliação final explicita 

 

 

[1] Artigo de autoria de Luciana Maria de Jesus, mestranda de Filologia e Língua Portuguesa — FFLCH-USP e de Helena Nagamine Brandão, docente do DLCV-USP